Descrição
Introdução à Maré Cheia – Nota do autor
“Maré cheia” é uma ideia. A ideia de que um indivíduo ou um povo encontra, através dos obstáculos, novas perspectivas de vida, sua diversidade cultural e o legado ancestral do seu lugar, sem permitir que ninguém o destrua. Em outras palavras, é conseguir se entender como um oceano que se recusa a se apequenar diante dos aterros e inunda-los. No papo reto: eu sou mais nós.
Poucos conseguem se perceber como uma maré cheia, apesar de serem. Gente que batalha todo santo dia por dignidade, pela benção de uma oração colhida com o próprio esforço, construindo, reconstruindo, estudando, trabalhando num emprego que não gostaria de estar, sendo uma ótima mãe, um bom pai, uma boa família que talvez não seja seus parentes, fazendo milagre com o salário que tem, ou na função da esquina que foi a única que o acolheu. Marés cheias que não se apequenam, são apequenadas por quem os aterra rotineiramente. Na soma de cada ambição, o mesmo resultado: querer o que deveríamos ter e gananciosos ganham mil vezes mais nos balcões que financiam o descaso. Agora, olha pra dentro de nós e dos nossos lugares num dia de domingo de calor em horário de almoço. Por um milésimo de segundo, você poderia pensar que a vida é bela. É que a gente se recusa a se render pra amargura.
Que a maré se encha e cubra os aterros.
Apresentação por Julie Oliveira
Maré Cheia é um reencontro. A ponte entre o passado e o presente de um poeta favelado que usa as palavras como arma de defesa. Seis anos depois, mergulhamos fundo nas profundezas de uma vivência tão única que é capaz de ser individual e coletiva ao mesmo tempo. Dessa vez, sou guia turística dessa aventura. Fui escolhida a dedo pra te contar os caminhos dessa viagem e apresentar os pontos turísticos do mundo poético que o Math inventou. Pensei muito em como fazer isso sem dar spoiler do que está por vir, então escolhi cruzar nossas palavras e te preparar para essa intensa imersão.
Eu diria que “crime perfeito” é a poesia dos jovens favelados. Tatuei no coração o verso em que ele diz “saindo pra ensinar nas vielas da incerteza”, porque no chão da periferia, quem educa é o morador. Nós, favelados, artistas e educadores sociais, somos teimosos demais para abaixar a cabeça pro terror do Estado. Seguimos contrabandeando saberes ancestrais que ameaçam esse sistema. Somos os loucos que ainda lutam para manter viva uma chama de esperança que vem do sorriso de uma criança e fica marcada do lado esquerdo do peito. A esperança pautada na busca pela dignidade de viver e sonhar, sem as dores da luta pela sobrevivência, que faz com que a realidade dura se apresente ainda cedo, no ronco do estômago e na saudade de quem se foi.
É nesse complexo da vida que evoluímos e desenvolvemos, até criar asas fortes e coloridas capazes de nos levar para longe, mas escolhemos voar com as pipas que nos fazem lembrar daqueles pelos quais vale a pena ficar. Entre fragmentos de histórias apagadas, vamos resgatando, recontando e reinventando maneiras de construir um novo mundo. Mas o processo é foda! É difícil se manter firme no meio de tanta insegurança. Vamos pro corre amanhã pra garantir o alimento de ontem, e nesse espaço de tempo, acontecem três ou quatro contratempos que nos lembram que acordar às 04:30 pra trabalhar não faz favelado ficar rico.
Mas a gente segue tentando. Deixando rastros para que os nossos possam interpretar os símbolos e signos escritos no mapa do tesouro que está dentro. Como no conto de Baobá, que guarda em seu tronco tudo de mais belo e potente que a hiena quer roubar e apropriar. Dizem que ninguém nasce sabendo, mas tenho minhas dúvidas. O corpo também carrega marcas ancestrais, e essas cicatrizes coloniais provam que não somos iguais e, por mais que eu tente, os espaços só são ocupados pelas mãos que me feriram. Fica fácil subir na vida lucrando em cima de quem sente dor. Televisionam as dificuldades que eles mesmos criaram e divulgam nossas vitórias como se fosse honra do colonizador.
Mas se a vaga de assistente é tudo que eles nos dão, a gente entra por essa brecha e destrói todo império por dentro, enraizando o chão de pedra que aterra uma maré de possibilidades. Nessa caminhada, vamos nos fortalecendo enquanto povo. Amigos. Sócios de um sonho real onde tudo é in ter pretado, porque fomos formados na escola da rua e somos mestres da sagacidade dos becos. Apesar disso tudo, ainda nos chamam de amadores. Então nos apropriamos da palavra e seguimos com caderno e caneta na mão pra escrever teses sobre o fotógrafo preto que fez história no nosso contexto e fortaleceu os cria apresentando um outro olhar sobre si mesmo.
E em um mundo onde só querem que a gente fale de dor, ousamos contar nossas histórias de amor e afeto. Narrar sobre os elos amarrados numa noite quente de domingo no pagode da esquina. Temos o direito de ter um romance real, e quando acontece… é reconexão ancestral. E da laje a gente vê o entardecer colorir nossa pele que se toca e se lê em braile.
O hoje é irrecusável. Por isso, naquela conversa íntima, aceitei esse (re)encontro com a Maré Cheia. É impossível começar um ciclo sem encerrar outro, e por isso, de forma mais madura e sensível, entendendo que nada foi em vão e que palavras são imortais, não fugimos da angústia e nem desviamos nossa conduta. Damos flores em vida ao que merece ser celebrado. E entre doses de café, escrevo com giz teu nome no chão da minha jornada.
Julie Oliveira é nascida em Manaus e cria do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Artvista independente, possui experiência em teatro desde 2009, é formada em Comunicação e Marketing, é escritora, roteirista, produtora cultural, biblioterapeuta, pesquisadora e comunicadora. Atua desde 2017 como educadora social e oficineira e atualmente cursa Pedagogia. É fundadora e curadora Centro de Aprendizagem Biblioteca Azul, espaço multidisciplinar e plural que dialoga e constrói caminhos junto a crianças e jovens periféricos.
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